Por que Orquestrando é o clímax de um movimento de afirmação da música brasileira iniciado no século 19, quando a família real portuguesa chegou ao Rio de Janeiro, em 1808.
1. 1808 – a afirmação da orquestra no Brasil
Cinco anos antes de o rei Dom João VI aportar no Rio de Janeiro trazendo a corte portuguesa para um longo período em que o Brasil-Colônia foi elevado à condição de metrópole, o padre mulato José Maurício Nunes Garcia (1767-1830) compôs a “Abertura Zemira”, a primeira obra sinfônica importante do país, com uma instrumentação combinando sopros (2 flautas, 2 oboés, 2 clarinetes, 2 fagotes, 2 trompas, 2 trompetes) com tímpanos e cordas, formato típico do classicismo vienense de Haydn. Em 1808/9, seus dois primeiros anos de atuação como mestre da Capela Real, Nunes Garcia também escreveu obras dramáticas, adaptando-se à influência da ópera italiana, que dominaria o século 19 no país. Ao todo, o genial compositor contabilizou 200 obras, grande parte delas sacras. A orquestra crescia em tamanho, variedade instrumentação e brilho.
2. 1868 – movimento de auto-afirmação nacional
Em 1868, o paranaense Brasílio Itiberê da Cunha (1846-1913) compôs, e publicou no ano seguinte, “Sertaneja”, a mais antiga obra pianística de concerto significativa escrita no país e das mais antigas composições brasileiras a fazer uso de melodias folclóricas, inaugurando o movimento contínuo e orgânico de busca concreta da auto-afirmação nacional que culminou, na primeira metade do século 20, com Heitor Villa-Lobos (1887-1959).
A grande música lírica, sinfônica e dramática passou a conviver, de 1850 em diante, com os compositores de música para piano. As primeiras aulas do recém-criado Imperial Conservatório de Música aconteceram em 13 de agosto de 1848. Na década seguinte instituiu-se a Imperial Academia de Música e Ópera (1857). Era dada a largada para as duas formas predominantes na música brasileira da segunda metade do século 19: de um lado, a ópera à italiana que gerou o segundo gênio brasileiro, Carlos Gomes (1836-1896); de outro, o piano, que provocou uma revolução na vida musical brasileira, com a geração dos “pianeiros” como Ernesto Nazareth (1863-1934) e Chiquinha Gonzaga (1847-1935), autores de popularíssimas danças brasileiras a partir de matrizes europeias, como o maxixe, o corta-jaca, o tango, a valsa e a polca. Impunha-se, em grande estilo, a vertente da música popular no país, unindo melodias e formas de salão com as técnicas do piano romântico. Não por acaso, Nazareth tinha como seu ídolo máximo Frédéric Chopin (1810-1849).
3. 1908 – Bandas ocupam o país inteiro
As primeiras bandas de música, que contam só com instrumentos de sopro e percussão, já existiam no Rio de Janeiro do século 18. Eram formadas por barbeiros – na maioria escravos – que tocavam fandangos, dobrados e quadrilhas, tanto em festas religiosas quanto profanas. O Brasil independente tinha apenas 7 anos quando, em 1831, criou oficialmente as Bandas de Música da Guarda Nacional, o que provocou um efeito cascata, levando o formato para cidades de todo tamanho no território nacional.
Aos poucos, cada cidade exibia sua banda própria, que ocupava o coreto da praça principal e se apresentava regularmente nos finais de semana. No final do século 19, em 1896, o genial Anacleto de Medeiros (1866-1907) juntou duas fortes tradições que se firmavam naquele momento no Rio de Janeiro: músicos formados no conservatório com os chorões que dominavam as noitadas de música e dança popular pela cidade inteira nos fins-de-semana. Um círculo virtuoso genial, que teve um fecho de ouro quando Villa-Lobos, em 1926, incluiu o tema de seu xote “Rasga Coração” em seu monumental Choros no. 10.
As bandinhas fazem uma verdadeira “ocupação” dos coretos espalhados pelo país durante o século 20, gerando um novo repertório de dobrados, marchas e chorinhos. Nelas formaram-se gênios como Patápio Silva (1880-1907), Altamiro Carrilho (1924-2012) e até hoje continuam saindo de suas fileiras músicos que depois integram as principais orquestras sinfônicas brasileiras.
4. 1938: Cordas europeias impulsionam as orquestras
No mundo inteiro, centenas de milhares de músicos europeus promoveram um impressionante movimento de emigração de seu continente na década de 1930. Assim, pipocavam com enorme repercussão pública internacional gestos de compositores como Igor Stravinsky (1882-1971) e Kurt Weill (1900-1950), e grandes maestros como Otto Klemperer (1885-1973) e Arturo Toscanini (1867-1957), que se fixaram nos Estados Unidos fugindo do nazismo na Alemanha.
Ao mesmo tempo, um volume excepcional de músicos, sobretudo de cordas, emigrou para outros países, pelo mesmo motivo. No Brasil, provocaram, de 1938 em diante, uma revolução na vida musical das orquestras brasileiras. Como as cordas constituem 60% dos instrumentistas de uma sinfônica, eles elevaram o nível de execução, estabeleceram novos padrões de interpretação nas orquestras de algumas capitais do país, como Rio de Janeiro e São Paulo.
Nas cidades menores, o efeito foi a multiplicação de orquestras de cordas, apenas com violinos, violas violoncelos e contrabaixo, grupos em geral de 11 a 20 músicos, nas igrejas evangélicas espalhadas por todo o território nacional. Atualmente, muitos dos músicos de cordas das principais sinfônicas brasileiras são oriundos de orquestras de cordas nascidas e consolidadas no culto evangélico.
5. Orquestrando o Brasil: Pela união de bandas e orquestras de cordas
Orquestrando o Brasil é um projeto irreversível que está modificando estruturalmente a face da vida musical brasileira, porque une as duas tradições historicamente mais fortes da música no Brasil: a das cordas, que remontam ao Brasil-Colônia e ao período histórico de Dom João VI; e as bandas que nasceram ainda no final do século 18 e hoje estão nos coretos na maior parte dos 5.561 municípios espalhados pelos 8,5 milhões de quilômetros quadrados de território.
Depois de realizar o mapeamento e aperfeiçoar de modo expressivo a vida musical de maestros de bandas e de orquestras de cordas por todo o Estado de São Paulo, em 2018, Orquestrando o Brasil já está começando a realizar a maior revolução musical que o país já vivenciou, desde os pioneiros projetos educacionais para a música desenvolvidos por Heitor Villa-Lobos na primeira metade do século 20.
Você é maestro de banda? Ou de um grupo de cordas? Então não deixe de participar deste projeto visionário, que une o carisma e a determinação do maestro João Carlos Martins com uma estrutura capaz de impulsionar a vida musical brasileira de modo efetivo. E irreversível.
João Marcos Coelho
Crítico Musical e Jornalista