A música ecoou sobre as águas tomadas pela lama de rejeitos de minério de ferro do Rio Paraopeba. Marcada pelas mortes de 249 pessoas (número confirmado até agora) no rompimento da barragem da Vale, em janeiro, Brumadinho/MG, parou mais uma vez no fim da tarde deste sábado, 31. Agora, pela arte. Em uma forma de agradecimento a quem de alguma maneira contribuiu para atenuar a dor e que torce pela superação da tragédia.
Em palco montado em um estacionamento à beira do Paraopeba, vítimas da mineradora, moradores, artistas, bombeiros e voluntários participaram do Concerto da Gratidão, no centro da cidade, um tributo a quem esteve ao lado dos moradores das comunidades atingidas. Juntos, mostraram que, em tragédia desta proporção, não há quem não sofra.
Bach, Martins teve a carreira de pianista interrompida por problemas em um nervo do braço direito que atrofiou três dedos, ainda na juventude. Adulto, sofreu de contratura de Dupuytren, doença que ataca a palma da mão. No seu caso, a esquerda, o que prejudicou ainda mais sua carreira de pianista. Aprendeu, então, a reger. Hoje, aos 79 anos, toca piano apenas com os polegares. Na regência, atua sem batuta. Por não conseguir virar páginas com rapidez, rege sem partitura, como fez em Brumadinho.
Questionado sobre como a arte pode ajudar a cidade a tentar superar o que vive, respondeu: “Basta dizer que a música é a prova que Deus existe”. “Corri o mundo representando o Brasil. Mas o convite mais emocionante que recebi na vida foi poder reger aqui em Brumadinho, com a banda desses homens que arriscaram a vida para salvar vidas”, disse. A apresentação teve a participação apenas de voluntários.
Para o maestro, o concerto tem como objetivo dar também esperança a quem perdeu parentes. “O importante é a emoção. É um evento baseado na palavra gratidão, pelo que esses heróis fizeram durante a tragédia, e de esperança para aqueles que perderam entes queridos”.
Efigênia de Oliveira, de 69 anos, moradora do Córrego do Feijão, umas das comunidades atingidas pela lama do rompimento da barragem, foi das primeiras a chegar ao concerto. Ela perdeu o neto, Robert Ruan Oliveira Teodoro, de 20 anos, funcionário terceirizado da Vale. Ainda hoje, ele está entre as 21 vítimas que continuam desaparecidas.
“A música ajuda, mas a gente nunca vai esquecer o que aconteceu. A cabeça da gente não tá boa”, afirmou dona Efigênia. Aos fins de semana, ela fica na cidade, na mesma casa em que vivia o neto. “O que eu quero é sair de lá”, disse. “É um trauma muito grande.”
Orquestras executaram músicas clássicas, como Jesus Alegria dos Homens, de Bach, e Bolero de Ravel, de Maurice Ravel. Talita Cristina Oliveira de Souza, de 16 anos, também acompanhou o concerto.
Encontrada em meio à lama pelos bombeiros, a jovem teve traumas nos membros inferiores e terá que colocar prótese no fêmur esquerdo. Passou seis meses no hospital, e foi a última sobrevivente da tragédia a voltar para casa.
“A música ajuda a esquecer um pouco. Com ela, você vê o lado bom da vida”, disse Talita. Obrigada a abandonar os estudos, ela toma cerca de 20 tipos de remédio por dia, entre analgésicos, antiinflamatórios e contra a ansiedade. Anda com ajuda de muletas e tem uma profissional de enfermagem em acompanhamento constante. “Espero conseguir voltar às aulas ainda este ano.”
Integrante da primeira equipe do Corpo de Bombeiros a chegar no local da tragédia, o tenente Felipe Rocha de Almeida Costa disse que a corporação é a merecedora da homenagem: “A atuação em situações com esta faz parte do nosso trabalho”. A equipe da qual participava o tenente retirou vivas da lama seis pessoas no dia do rompimento da barragem.
O concerto foi realizado dentro da 4a edição do programa “Arte Abraça Brumadinho”, da Fundação Dom Cabral (FDC). Teve, ainda, a participação do pianista Davi Campolongo, de 13 anos, que interpretou João Carlos Martins em filme sobre a vida do pianista e maestro.
Fonte: O Estado de São Paulo