Primeira execução no Brasil de ‘Couleurs de la Cité Celeste’, do compositor francês, ocorreu na Sala São Paulo
Um ótimo público ocupou na sexta-feira, 19, praticamente toda a Sala São Paulo, excetuando-se os camarotes e o Coro, para assistir a um concerto de percussão com obras do século 20. No programa, criações seminais da música viva, de hoje: Terceira Construção, de 1941, de John Cage; Rhytmetron, de 1968, uma das obras mais instigantes de Marlos Nobre; e a primeira execução no Brasil de Couleurs de la Cité Celeste (1963), obra-chave do século 20, do francês Olivier Messiaen.
E, ao contrário do que acontece em concertos totalmente preenchidos por música contemporânea, sou obrigado a repetir o advérbio ao afirmar que praticamente ninguém se retirou. Por tudo isso, o concerto de sexta-feira já pode ser considerado o mais importante e simbólico do 50.º Festival de Inverno de Campos do Jordão, que termina no dia 28.
O núcleo, a alma, o princípio básico do festival é este: proporcionar aos bolsistas a chance de conhecer e tocar – e ao público de ouvir – obras que jamais adentrariam salas convencionais de concertos. Um público de mil pessoas que acompanhou com atenção e espanto, aplaudindo… música contemporânea de percussão.
O centro das atenções naturalmente fixou-se na obra de Messiaen. “Reler o Apocalipse e buscar uma linguagem por leit-motiv, aplicada às principais ideias, personagens, símbolos e cores do Apocalipse” – esta foi a primeira anotação do compositor, em 1960, antes de colocá-la no papel pautado. Homem religioso, organista por mais de 30 anos da igreja da Trinité, em Paris, Messiaen teve sempre dois nortes em sua criação: a fé católica e a paixão pelo canto dos pássaros. Ambos estão presentes nessa obra para piano solista, seis percussionistas, 3 clarinetes, 2 trompas, 4 trompetes e 5 trombones.
Em 1962, quando começou a de fato escrever a música, já havia colhido em viagem pela América do Sul cantos de pássaros argentinos, venezuelanos e brasileiros, como os nossos sabiás, bem-te-vis e arapongas (esta representando o clarão da visão da eternidade, no momento culminante da peça; ouça no YouTube o canto da araponga). Cores da Cidade Celestial baseia-se no penúltimo capítulo do livro do Apocalipse, da Bíblia, onde se descreve “A Muralha Multicor”, obstáculo para se chegar à Cidade Celestial. Ele quis entreolhar a eternidade, e nela cabem a natureza (pássaros), as cores (ele era sinestésico, ou seja, associava cores quando ouvia sons: assim, aqui os metais tocam vermelho e os clarinetes azul) e os polirritmos, origem ancestral da música.
A execução foi exemplar, a começar do excepcional pianista Paulo Álvares, tão bom quanto Pierre-Laurent Aymard neste repertório; estendeu-se aos dez metais, às madeiras e à percussão. Melhor ainda a regência segura e clara de Wagner Polistchuk. Um concerto histórico.
Fonte: Estadão