Por que há tão poucas mulheres no comando das orquestras sinfônicas? Duas maestrinas brasileiras respondem

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Contratação de duas regentes pela Orquestra da Filadélfia abre debate sobre a presença feminina nos grandes grupos musicais

É uma notícia rara na música. Uma orquestra anuncia a contratação de duas regentes. Duas mulheres. Esta semana, a Orquestra Sinfônica da Filadélfia divulgou as contratações da alemã Erina Yashima e da colombiana Lina Gonzalez-Granados. A primeira será regente assistente do diretor musical Yannick Nézet-Séguin na temporada de 2019/2020, que tem início em setembro, e a segunda integrará o programa de mentoria, como parte do recém-criado projeto de bolsas de estudos da orquestra. As duas participaram de um processo seletivo com mais de 600 candidatos, que, nas etapas finais, incluiu uma audição com a orquestra.

Mas o que significa a contratação de duas maestrinas por uma orquestra sinfônica?

Priscila Bonfim é regente assistente da Orquestra do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Para ela, a contratação da dupla por uma orquestra tradicional deve ter reflexos no meio musical ao redor do mundo.

— Essa contratação tem um significado para a Orquestra da Filadélfia porque ela existe há quase 120 anos e sempre teve maestros. Então, há um efeito sobre os conceitos da própria orquestra. Mas acredito que isso vai repercutir ao redor do mundo por ser um grupo de referência, uma das maiores orquestras dos Estados Unidos – analisa Priscila. – Ocupar o cargo de regente assistente é um caminho natural na carreira de um maestro, e muitas mulheres regentes têm trilhado esse caminho. Tenho certeza que, em breve, elas ocuparão posições de ainda maior destaque.

No Brasil, o cenário para as maestrinas está em mudança. A Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp), a principal do país, tem como regente titular, desde 2013, a americana Marin Alsop. Em sua última temporada com o grupo, ela será regente de honra a partir de 2020. A brasileira Ligia Amadio, à frente da Orquestra Filarmônica de Montevidéu, no Uruguai, afirma que há um movimento recente de mulheres regentes ocupando as orquestras por aqui.

Há cada vez mais mulheres regentes de grande formação e qualidade artística no Brasil. Mas muito poucas ocupam postos nas grandes orquestras profissionais. É um movimento crescente, e há brasileiras realizando trabalhos extraordinários no país e no exterior – conta Ligia, ressaltando também o trabalho das regentes de coro. – No âmbito da regência coral, sempre houve maior receptividade à presença de mulheres em cargos de direção, justamente por este ser considerado um cargo de menos poder que o da regência orquestral.

Para Priscila Bomfim, o trabalho das mulheres começa a ser mais divulgado:

– Eu vejo que o cenário musical no Brasil tem caminhado em sintonia com o exterior. Muitas mulheres têm feito trabalhos de excelência à frente de orquestras pelo país, e isso agora começa a ser mais notado. A visibilidade do trabalho delas depende, em grande parte, das instituições que acreditam que a música independe de gênero e também da decisão de nós, mulheres, de percorrer o caminho da regência orquestral, que é árduo.

Prova de que as coisas estão mesmo mudando por aqui foi a realização, em 2016, em São Paulo, do primeiro Simpósio Internacional de Maestrinas, que teve uma segunda edição no ano passado, no Uruguai. Foram debatidos temas como a posição da mulher regente no mercado de trabalho, desigualdade e discriminação no ambiente profissional, além dos desafios e conquistas das mulheres na música. A repercussão foi tanta que o simpósio concorre na final do prêmio “Classical Next: Innovation Award”, em maio, na Holanda.

Ligia Amadio é uma das organizadoras do evento, e conta que a ideia do simpósio nasceu do encontro com as maestrinas Cláudia Feres, Érica Hindrikson e Vânia Pajares. O quarteto percebeu, então, que enfrentavam os mesmos problemas no exercício da profissão e no desenvolvimento de suas carreiras:

O simpósio tornou-se um movimento que pretende ter ação permanente, até que não surja mais a eterna pergunta: “por que há tão poucas mulheres regentes?” A repercussão foi imediata: várias orquestras e bandas começaram a incluir maestrinas em sua programação, e todas agora estão atentas ao tema. A união e a conscientização das regentes tornou-as mais confiantes. Elas entenderam que podem, e devem, ter espaço e oportunidade neste ambiente historicamente masculino.

Desconstrução da figura do maestro

Assim como Lina Gonzalez-Granados, Priscila Bomfim integrou um programa de mentoria para mulheres regentes, o Hart Institute for Women Conductors, uma iniciativa da The Dallas Opera, nos Estados Unidos.

 — É um programa pelo qual todas as mulheres regentes deveriam passar. Nele, refletimos sobre questões inerentes à regência orquestral feminina e também colocamos em evidência o nosso trabalho não só a nível nacional, mas também mundial. — afirma.

Um desses desafios é, de acordo com ela, desconstruir o arquétipo em torno da figura do maestro.

— Acho que as dificuldades encontradas pelas mulheres regentes estão ligadas à ideia que muitas pessoas ainda têm sobre a figura do maestro como o “todo poderoso”, o chefe que usa da sua autoridade e da sua força física para conduzir uma orquestra. Então, à medida que esse arquétipo vai sendo desconstruído, a mulher também passa a ocupar esse cargo de liderança. Talvez as dificuldades não sejam musicais. Elas têm a ver com a mulher no papel de liderança.

Ligia Amadio também vê o preconceito sobre a mulher em posição de liderança como um dos obstáculos para as regentes:

— A regência é uma profissão dura e exigente, que requer vasta formação musical e cultural, além de características específicas de liderança. As oportunidades de trabalho são mínimas, se falamos de regência orquestral. É claro que, se você é mulher, aceder aos cargos de direção nas grandes orquestras é muito mais difícil, pois existe ainda muito preconceito e temor – conta Ligia, que nota uma mudança de cenário. – Esta resistência está se dissolvendo rapidamente no momento atual, após muitos anos de atuação solitária de valorosas regentes pioneiras que, com sua coragem, determinação e grande qualidade artística, romperam barreiras em épocas em que realmente era inaceitável que uma mulher fosse regente.

Além de estar à frente da Orquestra do Teatro Municipal, Priscila Bomfim é maestrina titular da recém-criada Orquestra Sinfônica de Mulheres do Rio de Janeiro, que estreou mês passado. Ela foi convidada para assumir a função na orquestra, formada por 50 mulheres com carreiras consolidadas na música, pela diretora-geral, Luciene Portela.

— O projeto já existia há aproximadamente dois anos, mas se concretizou este ano como um reflexo do momento que vivemos na sociedade e até na História. Essa Orquestra nasceu com o desejo de inspirar e motivar outras mulheres a expressarem seu real valor e também para enaltecer o papel que cada uma de nós já exerce no meio musical.

Fonte: O Globo

 

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