Projeto formado para iniciar estudantes no estudo e na prática da música clássica agora se amplia para adolescentes vindos de escolas de toda a cidade
Nem festa, nem viagem, nem baile de debutantes. Ao completar 15 anos, Luiza Tajes Soares só tinha um sonho: ganhar um violoncelo. Moradora de um bairro afastado do centro de Pelotas, sem conservatório ou sala de concerto, a menina é mais uma das formadas pela Orquestra do Areal, projeto que já iniciou dezenas de jovens da periferia de Pelotas na música erudita – alguns deles inclusive estão transformando a música em profissão – e está se ampliando por toda a cidade.
Criada em 2014, quando a escola Ginásio do Areal recebeu um kit de instrumentos musicais do governo estadual, a orquestra conseguiu visibilidade e conquistou a simpatia da comunidade ao realizar concertos gratuitos e em eventos beneficentes – sempre que recebem cachê, o valor captado é usado para reparos dos instrumentos e trocas de cordas, já que o colégio não recebe verba específica para manutenção do projeto. Com o sucesso da iniciativa, a prefeitura da Pelotas pediu à sua coordenadora, a professora Lys Ferreira, que criasse um grupo nos mesmos moldes do Areal, mas abarcando jovens de todas as escolas da rede pelotense. E assim nasceu em maio de 2018 a Orquestra Estudantil Municipal, que já conta com três dezenas de estudantes de 12 escolas.
– Foi muito fácil construir a Orquestra Municipal porque as escolas já conheciam a Orquestra do Areal e estavam procurando por isso – avalia Lys.
As duas formações capitaneadas por Lys se apresentaram juntas pela primeira vez na semana passada, no Festival Internacional Sesc de Música.
O evento, que reúne alunos e professores de música de diferentes continentes, oferece aulas para o grupo do Areal desde 2017 e neste ano abriu suas portas também para o novo projeto. Um total de 40 estudantes, somando as duas orquestras, teve aulas e ensaios por duas semanas com uma ementa elaborada especificamente para eles pelo professor Gabriel Corrêa, de Caxias do Sul.
O resultado de tanto empenho foi demonstrado em um concerto, que reuniu mais de 200 pessoas, na Catedral do Redentor, carinhosamente conhecida pela população local como a Igreja Cabeluda, por conta da sua cobertura de hera.
– É muito bom tocar com a turma da Municipal, porque a gente se lembra como era a Orquestra do Areal no início. É como um espelho, que nos faz perceber como conseguimos nos desenvolver e entrosar de lá para cá – diz Luiza, agarrada ao violoncelo que a família se reuniu para comprar no seu aniversário de 15 anos.
Luiza pretende fazer da música profissão
Filha de uma cozinheira e de um funcionário de floricultura, Luiza causou estranhamento nos pais quando começou a tocar violoncelo, no princípio com um instrumento emprestado da escola.
– Eu nem imaginava que esse tipo de instrumento existia – lembra a mãe, Fernanda Soares.
Com o tempo, o estudo de escalas e partituras começou a se tornar uma rotina na casa. E deve se intensificar em breve, já que Luiza, hoje com 17 anos, pretende dedicar sua vida profissional à música. Ela planeja seguir os passos de ex-colegas como Bruna Monteiro, que está estudando Licenciatura em Música na UFPel, e Carlos Eduardo Santos, que está esperando o resultado do Enem para se matricular no mesmo curso.
Benefícios indiretos na concentração
Muitos dos estudantes não devem seguir o caminho da profissionalização, porém também são beneficiados de outras maneiras com a participação no projeto. É o caso de Rogerio Gonçalves Soares Junior, estudante de 13 anos que faz dupla com Luiza no violoncelo. Ele observa que, desde seu ingresso na orquestra, aumentou sua capacidade de concentração nos estudos:
– Para tocar em grupo, você precisa ficar atento à partitura, ao regente e ao que os colegas estão tocando. Isso desenvolve nosso foco. Por causa disso, consigo prestar muito mais atenção no que os professores falam em sala da aula. Quando vou fazer uma prova, tenho tudo guardado na memória, só porque consegui permanecer focado no momento das aulas.
Além de aumentar a capacidade de concentração dos estudantes, a experiência em orquestra também estimula os jovens a trabalhar em equipe. João Pedro Mailahn Lima, com 13 anos, morador do bairro Fragata, avalia que teve um salto em seu aprendizado desde que ingressou na Orquestra Municipal, em maio, depois de realizar aulas particulares por alguns meses.
– Conheci muita gente, de diferentes escolas, e também já não tenho mais vergonha de perguntar sobre algo que quero aprender. Agora, até acho chato tocar sozinho – diz João Pedro.
Investimento baixo com retorno social
Para Lys Ferreira, as orquestras jovens demonstram o potencial transformador da cultura na sociedade:
– Essa formação de hierarquia, onde cada um tem uma função importante na orquestra e no naipe que representa, ajuda os estudantes a entenderem o que é a vida em sociedade.
Foi interessado neste potencial transformador que Artur Corrêa, secretário de Educação e Desporto de Pelotas, convidou Lys Ferreira a montar a Orquestra Municipal, nos mesmos moldes do trabalho que já desenvolvia no Areal.
– O investimento em um projeto como esse é muito pequeno para o retorno social que oferece. Os alunos que ingressaram na Orquestra Municipal mudaram seu comportamento. De repente, crianças de periferia, que estavam com dificuldade na escola, ficaram cada vez mais interessadas nos estudos – afirma Corrêa.
Segundo o secretário, o custo para desenvolver a orquestra não passou de R$ 10 mil, principalmente para compra de instrumentos – sete violinos, duas violas, um violoncelo, um piano digital e uma bateria. Além de ser professora da rede estadual, Lys tinha um cargo na prefeitura, como musicoterapeuta no setor da saúde. Para ela liderar a iniciativa, foi cedida para a área de educação, não acarretando uma nova contratação. As aulas estão sendo desenvolvidas na Escola Técnica João 23, localizada no centro da cidade, para fácil acesso a partir de todos os bairros. Apesar de pertencer à rede estadual, o João 23 cede seu espaço para o projeto, colaborando para manter o orçamento enxuto.
Comunidade já abraçou projeto na dificuldade
Em 2016, a Orquestra do Areal demonstrou sua força para lidar com adversidades, apesar da falta de orçamento. Em uma madrugada, o Ginásio do Areal foi arrombado. Da sala de instrumento, os invasores conseguiram levar um computador e um piano digital. Depois do choque com a ação inesperada, o grupo conseguiu organizar um concerto beneficente e adquirir novamente os equipamentos.
– A comunidade abraçou a Orquestra do Areal, e agora também já tem um carinho enorme pela Orquestra Municipal. Não há como não se encantar. São jovens em situação de vulnerabilidade social que de repente transformam suas vidas a partir da música – conclui Lys.
Fonte: Portal GaúchaZH
Reportagem: Alexandre Lucchese
Fotos: Tadeu Vilani / Agencia RBS