Acalentar a alma, evocar um acontecimento marcante ou simplesmente relaxar. A música exerce nos corações humanos um fascínio raro, daqueles difíceis de traduzir. A harmonia entre letras despretensiosas e acordes singelos pode desencadear, ainda que em ouvidos menos apurados, um processo de fruição ímpar. Como terapia, a música tem sido utilizada para amenizar a dor marcante ou simplesmente relaxar.
Fundado em 2006, o coral Vozes do Despertar, em Natal, é um exemplo de como a musicoterapia tem ajudado mulheres a encarar o tratamento de câncer de mama. “A companhia das meninas é sempre agradável. Fora do núcleo familiar principal, é como se fôssemos os primos que se veem uma vez por semana”, conta o aposentado Alberto Florêncio da Hora, 71, regente e único homem a integrar o coral. O clima no local dos ensaios, um dos anexos do Centro Avançado de Oncologia, mais conhecido como Hospital da Liga, parece mesmo ser o de uma família. “Aqui é minha segunda casa”, revela a coralista e idealizadora do grupo, Ivone Ferreira, 62.
Dona Ivone conta que a ideia do coral surgiu durante o processo de tratamento da doença, há quinze anos. Ela revela que em suas idas ao hospital, não contava com nenhum apoio terapêutico. “Fiz tudo sozinha. Só eu e Deus. E venci”, desabafa. Com o sonho de cantar em coral desde criança, dona Ivone se diz transformada pelo canto. “Não tenho filhos. Criei um sobrinho que atualmente mora em Brasília. Eu moro sozinha e por isso era muito triste. Mas o coral mudou a minha vida”, confessa. Todas as voluntárias do grupo já tiveram a doença ou estão em tratamento.
As ações do coral, que integra o Grupo Despertar, não se restringem apenas aos corredores do Hospital da Liga, localizado no bairro de Dix-Sept Rosado, Zona Oeste da capital. Atendendo a convites, o grupo costuma se apresentar em outros hospitais e instituições da cidade. Aos 78 anos e cheia de entusiasmo, Francisca das Chagas Medeiros, a Chaguinha, fala orgulhosa sobre a emoção de participar de grandes apresentações, como as que ocorreram durante o Encontro Nacional de Coros em Natal (Enconat). “Já participamos do Enconat umas três vezes. Nós não somos profissionais e por isso achamos que somos menor. Mas, quando vamos a um encontro assim descobrimos que estamos mais ou menos no mesmo nível”, conclui.
Em outubro deste ano, o Grupo Despertar foi homenageado na Assembleia Legislativa do RN (ALRN) pelos 25 anos de atuação. Além do coral, o grupo mantém oficinas de ioga, dançaterapia, artesanato, além da oficina das emoções, coordenada por uma psicóloga. Todas as áreas foram homenageadas. Bem-humorado, seu Alberto vibra pela condecoração. “Fiquei muito feliz. Minha filha vinha me mostrar toda hora a repercussão nas redes sociais. E eu estava lá no grupo [de WhatsApp), de paletó, com minha cara feia. A homenagem foi muito marcante. Se eu fosse solteiro, ia esperar um casamento agora”, diverte-se. “Foi legal. O grupo me proporcionou esse momento de carinho”, completa.
Regente do coral há oito anos, Da Hora, como é chamado pelas meninas do grupo, faz questão de destacar a importância de cada uma delas. “A primeira grande experiência é conhecer a história de vida e a força que elas têm. Encontrei aqui gente boa e amiga, com disposição para fazer esse trabalho, apesar dos problemas que enfrentaram”. O regente admite que o coral é uma grande diversão onde todos costumam levar tudo muito a sério. “O grupo é a coisa de maior significado. Precisamos nos dedicar ao trabalho vocal e à interpretação dos arranjos com disposição”, afirma. “Que o nosso trabalho ajude na recuperação das pessoas e que possa ser apresentado para a comunidade como algo feito com qualidade, para além dos limites de uma terapia”, emenda.
Várias histórias em uma única crônica
A proximidade entre seu Alberto e as meninas é tamanha que em alguns momentos as experiências se assemelham. Em 2014, ele foi diagnosticado com câncer de próstata. A descoberta da doença não o abalou. O contato com o grupo foi fundamental para se manter confiante. “Eu sempre digo ao público nos lugares onde nos apresentamos que esse coral é a coisa mais linda do mundo. Afinal, ele é formado por mulheres que tiveram câncer de mama e por um homem que teve câncer de próstata”, destaca. A autoconfiança que seu Alberto encontrou no grupo é observada no discurso das coralistas. “A experiência do câncer de mama foi muito marcante. Mas, se nós temos capacidade de vencer a doença, temos capacidade de vencer qualquer outra coisa”, resume dona Ivone.
“Em um trabalho como o nosso, ninguém vai chegar e dizer: ‘que coisa horrível. Essa música é muito feia. Vocês precisam melhorar’. Mas, quando alguém se dirige espontaneamente para elogiar, nós entendemos que o trabalho realmente foi bom, embora saibamos das nossas deficiências”, comenta seu Alberto acerca da receptividade ao coral. “Não sei se por educação ou por estímulo, as pessoas sempre dizem que nós estamos bem. Nós fazemos a diferença na vida das pessoas que têm câncer. Com modéstia, mas fazemos”, acrescenta dona Francisca, entre risos.
A alegria e o bom humor são marcas registradas da turma. Descontraídas, as meninas incentivam seu Alberto a falar de uma situação divertida que aconteceu durante a solenidade em comemoração aos 25 anos do grupo. “Na hora da homenagem, o deputado responsável de anunciar meu nome estava um pouco atrapalhado porque havia sido convocado para o evento de última hora. Ele referiu-se a mim como ‘a senhora Alberto Florêncio da Hora’. Foi alertado sobre o erro, mas me chamou assim umas três vezes. Eu pensei: ele quer me desmoralizar. Pessoalmente, não tenho nada contra ele”, relembra em meio às gargalhadas que se multiplicavam pela sala. “Depois, enquanto conversávamos ele riu e me pediu desculpas. Por sorte eu me garanto”, acrescentou em tom de brincadeira.
Apesar da leveza do ambiente, o grupo nunca se esquece de sua verdadeira missão. Dona Francisca recorda com seriedade um dos momentos mais emocionantes para ela. “Me lembro de quando a gente foi cantar na UTI de um hospital e o paciente que estava num estado de pré-coma, reagiu ouvindo nossa música. Foi uma das coisas que mais tocou”. Já para seu Alberto, estar no grupo é o que há de mais especial. Seu primeiro contato com a música aconteceu ainda na infância. Aprendeu os primeiros acordes de violão com o irmão mais velho. Além de Música Popular Brasileira (MPB), seu Alberto passou a se interessar por música clássica. Depois da aposentadoria, fez um curso teórico para entender um pouco mais sobre o assunto. Todos esses conhecimentos ele aplica durante os ensaios. “Temos mais contraltos hoje no grupo?” Não. Estamos meio a meio, não é?, questiona ele enquanto o grupo se prepara para ensaiar a canção Marina Morena, de Dorival Caymmi.
“Eu olho para essas meninas e é cada uma mais linda do que a outra. Todas bonitas e cheirosas. Eu digo: pronto, vou ser bonito e cheiroso também”, dispara o regente, provocando risos nas coralistas mais uma vez. Desse modo, em meio a tantas brincadeiras, as preocupações do dia a dia ficam para trás. “Tem gente que tem um problema desse [câncer de mama]e se mortifica, começa a chorar, a se descabelar. Mas aqui não. Algumas delas até chutaram o marido”, continua seu Alberto. De novo, as meninas sorriem. Para elas, o importante mesmo é viver, ser feliz e ajudar a quem precisa. Unidas, todas essas ações se multiplicam. “Não tenho vontade de deixar o coral”, assegura dona Ivone.
Fonte: Tribuna do Norte / Agência Lide/UFRN – Felipe Salustino