Uma das artes mais universais, a música é capaz de conectar pessoas independentemente de fronteiras, diferenças culturais e idiomas. Isso é claramente comprovado ao ver a presença, em solo brasileiro, dos irmãos venezuelanos Leoner, de 18 anos, e David, de apenas 14 anos, que tocam mais de 15 instrumentos musicais e fazem da música uma profissão que é aprimorada todos os dias, mesmo em meio às dificuldades da pandemia de covid-19.
Leoner Abraham de Parra está na música há 10 anos, inspirado pelo seu avô que tocava a ranchera, típica música popular e folclórica mexicana. Ángel David de Parra, seguindo os passos do irmão, começou com apenas quatro anos. Os dois tocam, ao todo, mais de 15 instrumentos musicais, sendo os instrumentos de percussão latina, ukulele, maracas, violão, viola e o cuatro, típico instrumento musical venezuelano que é parecido com uma guitarra, mas de madeira.
Apesar de tocarem tantos instrumentos, a música da maioria fica na lembrança, pois eles não possuem instrumentos para praticá-los. “Temos apenas a viola e o cuatro. Tenho outro cuatro, mas ele não possui cordas, que custam são 100 dólares”, explica Leoner.
Antes de começar a tocar, Leoner me avisa que o único cuatro que possui e que funciona está com a madeira inchada devido aos perrengues da viagem da Venezuela para o Brasil, e que, por isso, poderia influenciar no som. O cuatro custa $ 400 dólares, o que equivale a R$ 2, 3 mil, e a viola clássica custa R$ 1 mil
Se as dificuldades existem em relação aos instrumentos, na música os dois jovens se garantem com o talento e o esforço que possuem. David, ainda criança e recém-iniciado na música, foi para a Itália tocar com o famoso maestro Gustavo Dudamel pela Orquestra Infantil Nacional da Venezuela, uma experiência que marca qualquer um ao conhecer não só mais do universo da música, como também as tradições e belezas do país europeu. “O projeto iria também para a Alemanha e o Japão, mas com a crise na Venezuela, foi interrompido”, lembra David.
A mãe, Dona Dianora, e o pai Publio, mostram orgulhosos as fotos do filho caçula tocando em solo europeu junto com a Orquestra.
Os dois saíram da Venezuela depois da crise financeira do país e vieram para o Brasil em 2019, com a ajuda da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias. Como a maioria dos imigrantes, os meninos passaram pelas dificuldades da vinda ao novo país, inclusive presenciando os protestos de brasileiros enfurecidos na Roraima quando David tinha apenas 12 anos. “Estávamos na Roraima quando brasileiros tentaram invadir o acampamento. A sorte foi que os militares conseguiram impedir o plano deles”.
Se à primeira vista, o Brasil não pareceu um país tão receptivo, isso não impediu a família de continuar o percurso em busca de uma vida melhor e mais segura. Pai, mãe e irmãos andaram de avião pela primeira vez, em um incrível e cansativo sistema de escalas aéreas, indo de Boa Vista para Manaus, de Manaus para Recife, de Recife para Campinas, e de Campinas para Campo Grande.
Aqui, conheceram a Orquestra Filarmônica Jovem Emannuel, formada por meninos e meninas da periferia de Campo Grande. A Orquestra é coordenada pelo maestro Órion Cruz, projeto parte da Fraternidade Sem Fronteiras. Pela Orquestra, tiveram a oportunidade de continuar se aperfeiçoando na música e aprender novos caminhos brasileiros, com a viola clássica e até mesmo a bossa nova.
David e Leoner contavam com a ajuda do maestro para ir até a Orquestra, que fica no centro da cidade. “Não tínhamos dinheiro pra passagem de ônibus”, explica Leoner. Quando ia de bicicleta, o jovem gastava 1h30 para ir e 1h30 para voltar. David explica que não conseguia fazer o mesmo percurso do irmão. “Eu aguento ir aqui perto, no mercado, na padaria. Mas tão longe assim, não consigo”.
“Uma vez, pegamos o ônibus até o terminal Bandeirantes, mas o cartão não tinha mais passagem. Tivemos que vir a pé até em casa”, conta David, que mora no Portal Caiobá, resultando em um percurso de sete quilômetros.
Com a pandemia e as restrições da quarentena, os ensinos de música continuaram à distância, porém com a dificuldade da falta de equipamentos tecnológicos. “Quando conseguimos, enviamos vídeos tocando para o maestro, porém a internet é ruim e não temos computador”. Isso se configura um empecilho inclusive para aprenderem o ensino básico na escola estadual. David está no nono ano e Leoner, no terceiro. Os dois caminham até a escola onde estudam para pegar as atividades para fazer de casa, já que não têm computador para o ensino on-line.
Se o ensino remoto é difícil para estudantes brasileiros, que dirá para dois estrangeiros que precisam estudar a história, geografia e língua brasileira. Leoner destaca que a diferença da língua é algo que está se acostumando, durante esse ano que muitos consideraram até “perdido” em meio à pandemia.
Os perrengues relacionados ao idioma também existem. “Não conhecemos muito bem o idioma, então às vezes é um pouco difícil. Quando vim para cá, fui em uma loja esportiva comprar uma bola, e um vendedor me falou: ‘essa bola é fraca’. Não entendi e a bola furou uma semana depois, aí fui perceber que ele tentou me avisar da qualidade da bola, mas não compreendi”, lembra rindo.
Com a viola clássica e o cuatro, David e Leoner tocaram e cantaram diversas músicas durante a entrevista, desde músicas clássicas rancheras como a Si Puedes Perdonar, que transmitem à emoção da cultura mexicana, até a mais contemporânea Despacito, que tocava em todas as baladas.
Aprendendo viola clássica e bossa nova, Leoner me garante que está sendo difícil, mas não impossível. “Essa palavra impossível não existe pra mim”, diz ele com muita sinceridade e humildade de um jovem que, com 18 anos, sonha em ser musicólogo e também professor de idiomas.
Quem tiver interesse em conhecer mais o trabalho musical dos jovens ou ajudar de alguma forma, pode entrar em contato com Leoner pelo telefone: 67 98481-8922.
Fonte: Campo Grande News